O trabalho Quando o Futuro Está no Passado de Gláucia Hamond Coutinho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Quem
poderia imaginar que a vida daquela mulher mudaria da noite para o
dia? Literalmente da noite para o dia...
Todo
mundo na vida já passou por situação semelhante. Uma simples
decisão, que pode mudar sua vida para sempre... As vezes, nem tão
simples assim. Mas imediata!
E
foi exatamente isso que aconteceu com Angelica Velmond!
Vamos
apresentar nossa protagonista! Angelica Velmond, 50 anos, atriz e
desempregada... Angelica é uma daquelas pessoas que sempre lutou bastante para conseguir um espaço ao sol. Na maioria das vezes, o
que realmente conseguiu foi um modesto espaço na sombra, diga-se de
passagem... Mas nunca parou de se dedicar, buscar e batalhar pelos
seus sonhos. Afinal, contrariando às expectativas, ela não era de
se entregar ao fracasso.
Numa
certa tarde, de uma certa sexta-feira, Angelica, como sempre, foi à
um teste de elenco. O teste aconteceria num estúdio na zona sul do
Rio de Janeiro. E lá estava Angelica, firme e forte, cheia de
esperanças, contando que desta vez, ou que somente desta vez, a
sorte finalmente estivesse do seu lado. Angelica decorou seu texto,
se produziu, se concentrou e lá estava ela de frente à claquete,
fazendo sua cena. Para ela, tinha tudo corrido bem. Mas vai saber que
tipo de perfil realmente era o buscado para a produção... Ou talvez
Angelica não era tão talentosa como achava ser...
Acabado
o teste, Angelica se encaminha para um dos banheiros do estúdio.
Sente uma tontura, já que não tinha se alimentado naquele dia
justamente para parecer mais magra para as câmeras, e por isso,
desmaia caindo no chão. Por ironia do destino, ela escolheu o único
banheiro que ninguém mais entraria naquela noite...
Quando
recuperou seus sentidos, um tanto o quanto nauseada, percebeu tudo
escuro. À julgar pela escuridão da noite, algumas horas já deveriam
ter passado... Tateou sua bolsa e alcançou seu celular para iluminar
o local. Com a ajuda da iluminação do mesmo, achou o interruptor e
acendeu as luzes. Andou por todo estúdio e gelou só de imaginar que
poderia ter sido esquecida naquele lugar! Ela desmaiou, ninguém
percebeu, e para piorar a situação foi trancada dentro de um
estúdio que só reabriria na segunda-feira seguinte... “Isso daira
um bom roteiro!” murmurou para si, numa tentativa infantil de
fazer piada com a tragédia que protagonizava naquele momento.
Mas
para sua surpresa, ela não estava sozinha. Um barulho de latinha de
refrigerante sendo aberta a fez perceber a presença de mais alguém.
Eis que uma figura sinistra, aparentando ter saído de um filme de
ficção, surge em sua frente, com um jaleco branco, uma latinha de
soda na mão e um óculos Pince Nez preso ao nariz. “Quem ainda usa
um óculos desses nos dias de hoje?” Pensou ela, num misto de
surpresa, medo e estranheza.
“O
que você está fazendo aqui? Quem é você? O estúdio era para
estar vazio numa hora dessas!” Perguntou e afirmou o sinistro
“Professor Pardal”. Angelica arregalou os olhos e disse: “Eu ía
te fazer estas mesmas perguntas! Eu vim participar de um teste, sou
atriz, sabe? Angelica Velmond! Mas desmaiei dentro do banheiro,
ninguém percebeu e cá estou olhando para uma pessoa que nem sei ao
certo quem é...”
“Meu
nome é Jorge. Sou amigo do dono do estúdio. Vim pro Rio participar
de uma conferência e o Carlos, dono daqui, me deixou ficar numa das
salas, enquanto passo uns dias na cidade Maravilhosa”. Sorriu o
esquisito “Einstein”.
Angelica
pega o celular para tentar contactar um taxi. Mas a bateria tinha
acabado naquele momento e ela não tinha um carregador à mão. Jorge
disse que poderia emprestar o dele, mas que teriam que esperar
Manuel, que traria alguns equipamentos e o carregador era um deles.
Após as devidas apresentações, passaram a conversar para matar o
tempo. Angelica achou interessante já que ele, sendo amigo do dono
do estúdio, quem sabe haveria uma remota possibilidade de uma
indicação para conseguir o papel que tinha feito teste naquele
final de tarde...
Ela
contou toda sua trajetória artística, sua vida difícil, seus
dissabores, seus receios, suas tentativas frustradas e sua má sorte
no meio artístico. Jorge, que até aquele momento não havia
mencionado sua profissão, escutava atentamente toda sua trágica
sina. Eis que Angelica, com um ar de cansaço e com os olhos um pouco
mareados, desabafa quase sussurrando: “Eu estou cansada, sabe?
Muito cansada... Cansada de nadar, nadar e morrer na praia... Não
sei se ainda existe alguma outra saída pra mim... Quem me dera
voltar no tempo e ser uma atriz numa época com menos concorrência..." Jorge interrompe bastante ansioso por mais detalhes: "Conte-me mais! Conte-me mais!" Angelica continua: "Ah, são devaneios apenas... É o que me restou. Eu não tenho mais sonhos. Eu tenho
devaneios...” Jorge, levanta sua sobrancelha direita, escutando
aquilo tudo com bastante atenção e fala: “Então me conta! Como
você acha que isso poderia acontecer? Veja bem, vamos só imaginar uma situação aqui. Digamos que você pudesse,
quem sabe, assim por exemplo, hipoteticamente falando, ok?... SE... Eu disse 'SE'... por
um acaso, existisse uma remota possibilidade de se usar uma... digamos assim... máquina... do tempo, mesmo que experimental, caso ela existisse, óbvio, você toparia
voltar no tempo e buscar sua fama no passado? E se por ventura a
máquina só pudesse ser usada uma única vez? Por exemplo, SE caso
você aceitasse o desafio, você não teria volta! Você teria essa
coragem? Ficar no passado, sozinha, por sua conta própria, mas com a
experiência vantajosa que você julga ter em relação às atrizes
de outrora?”
“Ah,
meu amigo, eu toparia sem pestanejar!" Gritou Angelica num impulso levantando-se da cadeira em que estava sentada. E continua sua narrativa como se falasse para si: "Eu não tenho filhos, nem tenho marido! Não tenho mais pais. E nem irmãos... Eu só tenho dívidas, meu caro... Dívidas e contas à pagar! Muitas contas... Que por sinal vão vencer esta semana...”
“Interessante... Muito interessante!”
Disse Jorge, retirando o Pince Nez do nariz e limpando-o em seu
jaleco.
“Angelica...
É esse seu nome, né?” “Sim! Angelica Velmond!” Respondeu a
atriz.
“Angelica,
a gente se conheceu há pouco, não sabemos nada pra valer um do
outro, não é verdade? Aliás você sabe pouquíssimo a meu
respeito. Mas eu vou te dizer. Baseado em tudo que você me contou, acho que merece minha confiança... Bem, eu, além de me chamar Jorge e ser
amigo do Carlos, o dono disso daqui, eu sou também um cientista. Na verdade
estou aqui no Rio para um experimento. Um experimento secreto. E o único civil, por assim
dizer, que sabe deste experimento é meu amigo Carlos (agora você sabe também), pois numa
dessas salas está todo meu equipamento! Anos e anos de pesquisas
salvos em computador! E um dos maiores feitos da humanidade numa
máquina construída por mim! Você quer ver? ”.
Ao
ouvir isso, Angelica gargalhava sem parar como se estivesse assistindo
à uma comédia das boas!
“Tudo
bem, Angelica... VELMOND". Jorge frisa o sobrenome com deboche e raiva. "Pode rir à vontade! Eu vou entrar na minha sala pois
tenho muito trabalho pela frente. À propósito, o rapaz que vai
trazer o carregador só volta amanhã. Durma bem aí nessas cadeiras.
Boa noite!”
“Não!
Espera! Desculpa! Eu sou assim mesmo! Tenho o riso frouxo!” Disse
Angelica, meio sem graça.
Jorge
dá um “ok” com a cabeça, a pega pelo braço e fala baixinho:
“Vem comigo!” E ela segue, sem contestar.
Subiram
2 lances de escada até que chegaram em frente à uma porta, que
mais se parecia com uma porta de elevador. Jorge pegou uma chave e
abriu o cômodo. Na mesma hora Angelica pôde sentir o frio, quase
glacial, como ela mesma pensou, que vinha de dentro daquela sala. E
muitos, mas muitos equipamentos e computadores ligados estavam ali.
“UAU! Quase uma NASA!” Pensou Angelica com seus botões. Mas
guardou o pensamento para si com medo de fazer uma piadinha sem
sucesso e aborrecer o figurão.
Jorge
mostrou todos os equipamentos e explicava como um palestrante, cada
peça, cada botão.
Eis
que ele olha para o relógio, levanta as sobrancelhas e diz:
“Angelica, são 2 horas da madrugada. O rapaz, o Manuel, chegará
as 6. Sendo assim, temos 4 horas só nós 2 sozinhos aqui. Você
topa?” Mencionando esta última frase levantando as sobrancelhas
continuamente, numa maneira estranhamente engraçada.
Angelica,
sentindo-se assediada e com um pouco de medo, tira um guarda chuva da
bolsa, e apontando o mesmo como uma espada para Jorge, grita: “Tá
maluco? Eu sou atriz, seu babaca! Não sou puta! Tá pensando que
tudo quanto é atriz é puta, é? Tenta alguma coisa que eu saio
correndo pela rua gritando até a polícia aparecer! Vem! Vem que eu
te mato!”
Jorge,
levanta de novo a sobrancelha direita e responde pausadamente,
balançando a cabeça: “Não é nada disso... É que eu ainda não
te expliquei direito. Falha minha. Eu tenho aqui uma máquina. Uma
máquina experimental, claro. É muito importante que isto fique bem
claro! Mas é uma máquina única. Diferente. E espero que você não
deboche do que eu vou falar, mas é uma máquina... do tempo. E eu
não estou brincando! A única coisa que eu preciso é de uma cobaia.
Digo, um voluntário. Ou uma voluntária... No caso... Você topa?
Como você mesma disse, esta, definitivamente, não é a sua época!
Voltando ao passado, quem sabe, você terá mais oportunidades na
área artística! E a única coisa que você deixaria para traz seriam suas dívidas... O que já seria um bônus e tanto! É só você me contar qual o nome que adotaria no
passado, claro, pois não poderá usar o seu atual... Isso é obvio.
Sabe como é... Segurança... Conflitos... Essas coisas... Até por que você vai
desaparecer do presente... E sabendo seu o nome artístico que você
adotará em sua viagem, assim eu saberei se o experimento foi um
sucesso. Ou não... Quem sabe se o seu futuro não estaria no
passado? Hein? Já pensou? Então, o que você me diz? VOCÊ TOPA?”
Angelica
fica pensativa por alguns minutos. E Jorge também. Ela parece pensar
se aquilo tudo seria verdade ou apenas um papo furado. E ele começa
a achar que fez uma tremenda besteira confidenciando aquele super
projeto top secret...
“Cristina
Vermond! Isso! Vou usar este nome!” Exclamou Angelica, decidida e
esperançosa!
“Bem,
Angelica, caso este projeto realmente aconteça com sucesso e caso
você realmente consiga obter seu reconhecimento profissional, é bem
provável que, se a gente consultar a internet agora, neste exato
momento, encontraremos algum registro de alguma atriz chamada
Cristina Vermond... Pois se você for mesmo para o passado, o passado
já aconteceu! Isso é fato! É um paradoxo do tempo!”
Após
essas palavras, os olhos de Angelica brilharam por conta das lágrimas
que começaram a cair.
“Ai,
não sei... Estou com um pouco de medo de pesquisar e não achar
nada... E se eu morrer na viagem?” Disse a atriz reticente. “Bem,
se você morrer na viagem, não encontraremos registro algum...
Óbvio! Mas também não podemos descartar a possibilidade de você
não ter conseguido provar seu talento no passado... Uma
desconhecida, sabe-se lá vinda de onde, tentando ser atriz, sem
poder comprovar alguma experiência que seja... Ou você pode ter
mudado de ideia, se casado no passado, mudado de profissão... sei
lá! Mas... pode ser válido...” Retrucou o cientista.
Angelica,
repentinamente, aceita o desafio. Mas desiste de checar a internet à
procura de provas da suposta existência de alguma Cristina Vermond
no passado. Ela aceita entrar no jogo cegamente! “Quem está na
chuva é para se molhar!” Falou com a voz trêmula.
Jorge
sorri e fala cheio de emoção e ansiedade: “Você acaba de fazer
parte de uma das maiores conquistas da humanidade, minha cara! Pena não termos champanhe! Vamos! Vou te preparar!”
Angelica
responde a um enorme questionário sobre sua saúde e Jorge tira seu
sangue para exames. Tudo certo! Tudo conforme os protocolos exigidos.
Jorge
abre a cápsula do transporte temporal. Angelica entra. Ele aperta
vários botões do computador, tecla muitas palavras, e um barulho
semelhante à um gerador começa a ecoar no recinto. Um cheiro
estranho toma conta daquela sala gelada. Um cheiro parecido com éter, talvez de
laboratório ou de hospital. Uma luz clara e intensa surge de dentro
da cápsula. De repente, o barulho cede por completo. E uma fumaça
branca e gelada sai de dentro daquela parafernália temporal. Angelica
não mais estava lá...
Jorge
fica parado por alguns instantes e seu coração dispara. “Será
que finalmente consegui?” Essa era a frase que se repetia em
looping dentro de sua cabeça. Ele corre para o computador, hesita um
pouco, pára, pensa, respira fundo e toma coragem! E como um louco
começa a teclar freneticamente. Digita “Cristina Vermond”! Mas
não olha para o monitor. Conta até 10. E finalmente toma coragem e
encara os resultados de sua busca. Gradativamente seus olhos vão se
enchendo de água! Ele retira seu Pince Nez do nariz, leva a mão ao
peito, congela. E uma lágrima escorre pelo seu rosto. Olhando
hipnotizado para a tela do computador, começa a soluçar como uma
criança que chora pelo doce que caiu no chão. Seu choro começa a se misturar com uma risada! Eis que a primeira
referência que surge na pesquisa do Google era a seguinte:
“Cristina
Vermond – Wikipédia ... Grande e famosa atriz dos anos 50, que
começou sua trajetória tardiamente no showbiz. Vencedora da
estatueta do Oscar de melhor atriz coadjuvante em sua brilhante e
avançada atuação para os padrões da época, no filme 'A Máquina do Tempo' (The Time Machine), em
1960...”
FIM
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