Criei este texto ontem, durante uma aula de improvisação. Apenas detalhei uma pouco mais para dar a devida forma estética.
Dedico esta obra a todas pessoas "especiais" por natureza, ou que se tornaram "especiais" por algum motivo.
O Olhar do Coração by Gláucia Hamond Coutinho is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 3.0 Brasil License.
Carol já era uma mulher adulta, que vivera intensamente cada pequeno momento de sua vida, quando o pior aconteceu... Ninguém teria feito tanta coisa como ela fez. Com 35 anos, ela parecia ter vivido mais do que uma pessoa de 80... Mas, a “vida” parece ter vindo cobrar o seu preço... Nada vem de graça, não é verdade? Tudo parece ter seu custo. E por conta de tantas aventuras, na maioria das vezes um tanto o quanto perigosas, Carol sofre um acidente de carro e além de cadeirante, fica cega...
Mas o que importa? Ela viveu tudo que alguém poderia viver numa única vida, não é verdade? Melhor dizendo, ela viveu mais do que alguém poderia viver em uma única vida! E essa frase: “Mas o que importa?”, era o que ela repetia, pra si mesma, sem parar, na inútil tentativa de se convencer de que, apesar do terrível mal que lhe acontecera, ela, pelo menos, viveu tudo que poderia ter vivido... Mas isso era justo? Definitivamente, ficar cadeirante e cega, não é justo para ninguém! Ninguém, por pior que seja, merece tal infortúnio. Muito menos Carol, que era uma pessoa doce, meiga, amiga, simples e rica de coração... E que coração! Enorme!
Mas, como dizem por aí, Deus escreve certo por linhas tortas... E baseado nesta frase, Carol tenta, com muito esforço, entender estas tais linhas tortas, ou onde possa estar o “certo” nisso tudo...
Mas, depois do acidente, com a cegueira, Carol começa a sentir saudades do que nunca mais voltaria a enxergar. Ser cadeirante já era um grande fardo, mas ser cega, para ela, era o fim... Como cadeirante, ela poderia, bem ou mal, dentro de um limite e com a ajuda dos outros, fazer quase tudo que fazia antes. Mas cega, nem mesmo com o auxilio dos outros, ela voltaria a saborear as belas cores da natureza.
E nesse turbilhão de pensamentos que atormentavam sua cabeça, Carol se recorda de um maravilhoso lugar que desfrutou quando ainda era uma criança de 10 anos. O avô paterno de Carol tinha uma fazenda no interior de Minas Gerais. Carol, seus primos e os filhos dos funcionários dessa fazenda, brincavam por toda propriedade sem limites. Corriam, andavam a cavalo, nadavam no rio, brincavam de esconde-esconde nas estrebarias, bebiam leite quentinho das vacas, roubavam pedaços dos queijos que ainda estavam “curando”, faziam esculturas de barro na beira do riacho e todo o tipo de brincadeira que uma criança poderia fazer num lugar tão lindo e paradisíaco como uma fazenda, cheia de maravilhas naturais sem igual.
E Carol começa a se recordar do que mais a deixava doida pra voltar nas férias àquela fazenda. Era um lugar ao qual ela nomeou, ainda criança, de “a porta secreta para o céu”. Mas o que poderia ser uma porta secreta para o céu? Nos limites da propriedade, quase na fronteira com uma outra fazenda, a paisagem parecia realmente mudar por completo. Montanhas e uma vegetação densa tomavam conta do lugar. A sensação era de haver por ali um portal dimensional onde, ao transpassá-lo, tudo poderia mudar... A própria mudança abrupta na paisagem já dava margens a uma imaginação fantástica. E o local era maravilhoso! Muitíssimas árvores, montanhas e grutas. Muitas grutas. Mas uma, em especial, fazia toda diferença... À sua entrada havia uma enorme mangueira, onde Carol, com a ajuda de um canivete, cravou suas iniciais dentro de um coração. Do lado esquerdo dessa mangueira haviam umas rochas com muito limo, pois se localizavam praticamente na entrada escura desta gruta. Mas a gruta não tinha uma abertura como as outras. A impressão que se tinha era de que, há muitos e muitos anos atrás, houve um desabamento e a entrada da gruta se fechou para sempre. Mas, se você observasse bem, na parede dessa suposta entrada, havia uma fenda. Uma fenda oval de aproximadamente uns 10 cm de comprimento. Mas com uma largura suficientemente generosa para se vislumbrar o que havia lá dentro. E quando as crianças, com a ajuda umas das outras, alcançavam a altura daquele buraco, podiam apreciar o que tinha de mais encantador naquela fazenda! Um lindo lago límpido e verdinho claro, quase azul, que refletia, em todas as paredes internas da gruta, toda resplandecência do sol, que entrava por uma grande abertura no teto daquela câmara secreta. A gruta parecia estar dentro da montanha, pois era impossível de se chegar ao topo da mesma para tentar olhar a tal abertura e ver o lago de cima, sob um outro ângulo. As crianças passavam horas se revezando para deslumbrar aquele paraíso perdido. Um elo secreto com o divino. Um portal para uma dimensão superior. Simplesmente, um lugar de paz...
Isso tudo era a descrição das crianças para aquele local onde o tempo parecia parar enquanto elas estavam por ali. E elas chegavam mesmo a acreditar em suas designações.
E toda essa visualização do passado causavam uma certa angústia em Carol. E o que ela mais queria, mais do que tudo em sua vida, era poder retornar àquele lugar maravilhoso e poder, pelo menos uma vez que fosse, olhar por entre aquela fresta... Uma fresta relativamente pequena que te dava a graça e a benção de contemplar o Éden. Se ele realmente existe, aquele era o seu lugar.
Carol, seus primos e os amiguinhos da fazenda, mantinham aquele lugar como um segredo. Até porque, os adultos não chegaram a acreditar naquelas “fantasias” de criança. E elas acharam por bem, deixar assim mesmo. Em segredo. Um mistério apenas revelado para crianças. Afinal, quem acreditaria numa gruta, com a entrada soterrada, onde havia uma fresta, por onde se olhava um lago, completamente límpido, dentro de uma montanha, com uma abertura generosa em seu teto? Só poderia ser conversa fantasiosa de criança mesmo.
E com tantas saudades enlouquecendo sua mente, Carol pede a sua mãe que a leve a antiga fazenda para poder vivenciar aquele nirvana que experimentou quando garota.
Sua mãe, sem entender o porquê daquela atitude “insana”, resolve não contestar e agraciar sua filha com este desejo um tanto o quanto extravagante, e porque não dizer, esdrúxulo.
E lá se foram elas, estrada a fora, numa pick-up, devidamente equipada para melhor atender às necessidades de Carol, rumo a Fazenda Consolação. Nome este que não teria melhor significado do que naquele exato momento.
Carol não voltava à fazenda há décadas! O que lhe causava uma certa tristeza, já que perdeu tanto tempo com aventuras inúteis e fúteis, ao invés de rever aquele lugar secreto, que agora não teria mais como poder apreciar tamanha beleza natural. E elas finalmente chegam. “Seu” Manoel, funcionário dedicado e mais antigo da fazenda, abre a porteira e libera a entrada. A fazenda agora pertencia ao tio de Carol. Foi a parte da herança que lhe foi dada por direito.
E como de costume, “seu” Manoel tira seu chapéu e faz uma “reverence” para cumprimentá-las.
_”Dia, Dona Heloisa! Dia, menina Carol! Que surpresa as senhoras por aqui!”
E auxiliadas por “seu” Manoel, e com muita dificuldade, chegaram ao local descrito por Carol. Para sua mãe, aquilo tudo parecia apenas uma vontade de criança mimada, mas que ela, por estar morrendo de compaixão da filha amada, a realiza sem maiores indagações.
E Carol começa a narrar para aonde elas deveriam seguir. E pergunta:
_”Ta vendo uma mangueira enorme?” _”Tô”. Responde a mãe. E Carol continua:
_”Foi nessa árvore aí que eu marquei minhas iniciais com um canivete. Tá vendo minhas iniciais aí? Está com um coração em volta. Tá vendo? Responde, mãe! Tá vendo?”
E a mãe diz que sim, ao passar suas mãos ao longo do suntuoso tronco e sentir nas pontas dos dedos o contorno das letrinhas dentro do coração – CHC – Carolina Herbert Castillo. Curiosa formação. Um nome brasileiro, seguido de um inglês e outro espanhol. Emoldurados por um coração. Um coração, a heart, e, un corazón... “CHC”...
Carol começa a se emocionar... E pede pra sua mãe achar a pequena fresta, por onde ela, seus primos e as crianças da fazenda, olhavam e admiravam o lindo e misterioso lago. E com muita dificuldade, ela encontra o pequeno buraquinho e olha por ele. Mas nada vê... O que ela vê é apenas um monte de pedras empilhadas, como se algum desmoronamento tivesse acontecido e encoberto aquele lago por inteiro. Mas, realmente, uma grande abertura no teto, ainda era possível de se notar. E era exatamente por ali que o sol penetrava no ambiente, iluminando tudo por dentro. E sua mãe diz:
_”Não tem nada aqui. Só pedras. Porque insiste nessa fantasia de criança?”
E Carol se desespera, começa a chorar e berra:
_”Como não tem nada? Você não tá olhando no ângulo certo! Inclina a cabeça um pouco para baixo, vira o rosto meio de lado pra conseguir olhar o lago direito! Tenho certeza do que estou falando! Eu sempre fazia isso! E eu era pequena, precisava da ajuda dos outros pra olhar! Como você, que tem uma altura razoável, não consegue enxergar? Vocês sempre duvidaram da existência desse lugar! A verdade é essa! Mas nunca se propuseram a averiguar se ele realmente existia!”
Sua mãe nota o desespero da filha e tenta confortá-la, fingindo ver o que na verdade não via. E diz:
_”Ah, tem razão! Agora sim, estou vendo melhor! Eu vejo um lago! Um lindo lago!”
E Carol, com o rosto todo banhado de lágrimas, fala confortada:
_”Eu não disse a você? Este lago não é lindo? Não é maravilhoso? Não é bonito de verdade? Não me lembro de ter visto algo tão bonito em toda minha vida! Agora você tá vendo o que eu sempre te falei e nunca me acreditou! Esse é o lugar mais maravilhoso que meus olhos um dia puderam deslumbrar!”
Carol se sente como se tivesse voltado no tempo... Como se realmente pudesse ver o que via no passado. Na sua doce infância na fazenda. Quando ela mal conseguia aguardar a chegada das férias para desfrutar daquele paraíso.
E a mãe, meio sem graça, e emocionada também, responde:
_”É, minha filha, você tinha mesmo razão. Esse lugar é maravilhoso. Muito bonito mesmo! Chega a doer meu coração!” Dor esta que realmente acontecia, mas por outro motivo... Não pela maravilha do que dizia ver, até porque nada se via, mas pelo fato de mentir para tentar dar algum alento e conforto ao coração da filha tão sofrida...
De repente, o choro compulsivo de Carol dá uma trégua. Mas, ainda emocionada, diz algumas últimas palavras antes de deixar o local:
_”Mãe, agora podemos ir embora. Já vi o que queria tanto ver. Eu vi pelos seus olhos. Você viu com os olhos e eu vi com o coração...”
Sua mãe emociona-se com essas palavras e segue em frente, empurrando a cadeira de rodas da filha.
Quando estavam acomodando as coisas para entrar na pick-up e voltar para a cidade, “seu” Manoel, aproveitando um momento de distração de Dona Heloisa, segura o braço da jovem e fala baixinho para que somente ela escutasse o que desejava tanto dizer:
_”Carol, minha menina. Eu também conhecia aquele lago! Sempre que me sobrava um tempinho na lida, eu ia descansar por lá, sabia?”
Carol, ao ouvir isso, deixa algumas lágrimas escorrerem pela face, sorri carinhosamente e aperta as mãos de “seu” Manoel, sem dizer uma única palavra. Seu sorriso já dizia tudo.
E lá se foi a pick-up, deixando um rastro de poeira para trás. E “seu” Manoel continuava ali, no meio da estrada, pensativo, olhando a pick-up desaparecer na estrada de terra.
E eu pergunto a vocês:
Será que aquele lugar, em algum momento do tempo, realmente existiu, ou foi apenas fruto da gigantesca imaginação daquelas crianças?
E quando finalmente a pick-up desaparece por inteiro na última curva da estrada, “seu” Manoel, tira o chapéu de vaqueiro, coça a cabeça e fala com seus botões:
_”Mardito abalo sísmico! Cabô com a alegria da criançada”...